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Vidas bordadas

Somos feito costureiros a tecer o incrível bordado da vida. Há dias em que o trabalho sai fácil, que conseguimos preencher os pontos com perfeição. Há outros em que erramos repetidas vezes e temos que voltar algumas carreiras para que no final o resultado seja bom.

A agulha, por vezes, pica nossos dedos. As mãos, não raro, costumam sentir dor. Em meio a tudo isso, alguns acabam por desistir da empreitada e dão fim à sua obra. Outros nos são arrancados e partem muito cedo para vê-la concluída. Ambos nos deixam bordados de saudade.

Caminhos cheios de cor, vibrantes, intercalam-se com outros escuros e sem vida. Mas não se engane: todos são essenciais no final.

Na conclusão dessa empreitada, de linhas retas e curvas, ouso dizer que o que vale é o caminho percorrido, os pontos em que nos cruzamos, o trabalho realizado a cada dia, os erros que fizeram de nós costureiros mais experientes e calejados e, principalmente, o amor que deixamos em cada ponto ali bordado.

Mesmo com tantos costureiros, o trabalho nunca sai igual. É inegável: cada um deixa sua marca inigualável no bordado da vida.

Sete da manhã. Estou dirigindo e paro no farol, a caminho da universidade. Ao meu lado, pessoas dormindo. Vejo suas casas e observo seu sono. Elas moram nas ruas, mais especificamente embaixo de um viaduto.

Fico imaginando como é não ter um teto e, desta maneira, ter de partilhar momentos íntimos com uma multidão, que por aqui passa cotidianamente.

Não ter liberdade para se despir ou se relacionar e nem ter TV como passatempo. Não poder fechar as janelas para evitar a claridade de um novo dia que chega e nem ter onde se abrigar em dias chuvosos. Acordar e dar de cara com um mundo que já amanheceu e que segue para cumprir mais um dia de suas atividades rotineiras.

Durante os poucos minutos em que o farol está vermelho, os meus olhos devoram a cena que vejo pela janela. É tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe.

Vejo a desigualdade no rosto de cada um dos moradores da residência que tem o céu como teto, o concreto como cama e o asfalto como quintal. A velocidade de São Paulo passa ao lado, mas não pára por aqui. O ritmo da produção também não. Embaixo deste viaduto, há seres humanos cuja busca diária é pela subsistência.

Levo um susto que me traz de volta à realidade. É um pedinte batendo em meu vidro. Ele quer esmolas. Digo que não tenho e ele se vai. Então, o sinal abre e eu acelero, afastando-me novamente da dura realidade das ruas, com a triste sensação de ter as mãos atadas. Amanhã e depois, voltarei a visitar esta casa, na qual ninguém precisa bater à porta para entrar.

(Texto produzido em 2008)

Aquele dia

O dia em que te perdi

O céu ficou nublado

O cachorro não latiu

O cantor desafinou

A criança chorou

A praça esvaziou

O comércio não abriu

Ou sei lá

Pode ser que

Lá no fundo

Fui eu mesma que

Tranquei as portas

Pro mundo

E quis ir com você

Somos nossas perdas e ganhos

Sonho e pesadelo

Céu e inferno

Paz e guerra

Travada dentro de nós

Somos as cicatrizes

Que nos restaram

Somos riso, somos lágrima

Somos a inconstância

O sobe desce, o alto e baixo

Up and down

Somos a certeza do começo e do fim

Esperança de dias melhores

A fome e a saciedade

Ciência e religião

Filhos de Deus, Alá, Buda e Maomé

Somos o enterro dos nossos amados

Somos seres finitos

Buscando o infinito.

Image

Quanto maior o tempo que me separa do dia de sua partida, mais difícil de aceitar que o mundo continuou enquanto o seu próprio mundo parou. A cada conquista, a cada notícia boa. A cada colo que preciso. Queria contar com você. Queria você aqui.

Difícil dizer que sou a mesma que era antes de você sumir. Não sou. Sua presença me faz falta. Desde então, carrego ausência.

Mas carrego também lembranças. Lembranças que vão comigo aonde eu for. Que te mantém vivo dentro de mim.

Tudo é finito. Tudo é passageiro. Tudo se esvai. Enquanto puder, porém, guardarei comigo as lembranças. Que enganam a morte e trazem resquícios de vida.

E a cada palavra que de ti escrevo, nossas memórias ganham forma. E tomam um lugar no mundo. O meu e o teu mundo passados para o papel. Porque um dia o meu mundo também terá fim. Mas aqui nessas linhas sempre nos manteremos vivos.

E poderemos brincar de ser gente transformada em palavras. A cada novo leitor, ganhar novas compreensões e contornos. Aqui também o final é a gente que escolhe. E as minhas palavras eu me atrevo a escolher:

E

viveram

felizes

para

sempre.

seria a obra Doidas e Santas, de Martha Medeiros.

Apesar de não ter me identificado com o resultado do teste “Que livro é você?”, do portal Educar para Crescer, compartilho aqui o link para quem também quer descobrir (e questionar) o veredicto.

E aí, que livro vocês seriam?

(A ilustração ao lado é do jornal espanhol ABC. Linda, né?!)

Edney Silvestre é um mestre na arte de reunir palavras. Suas frases são dotadas de tanta beleza que dá vontade até de saboreá-las em voz alta. Palavra por palavra que, como numa corrente, unem-se formando elos graciosamente entrelaçados. Foi com essas percepções que fechei o romance “Se eu fechar os olhos agora”, após horas de uma leitura extremamente prazerosa.

“Se eu fechar os olhos agora, ainda posso sentir o sangue dela grudado nos meus dedos. E era assim: grudava nos meus dedos como tinha grudado nos cabelos louros dela, na testa alta, nas sobrancelhas arqueadas e nos cílios negros, nas pálpebras, na face, no pescoço, nos braços, na blusa branca rasgada e nos botões que não tinham sido arrancados, no sutiã cortado ao meio, no seio direito, na ponta do seio direito.”

É dessa maneira que se inicia a saga de dois garotos de 12 anos, Paulo e Eduardo, compelidos a deixar de lado a inocência e a doçura do universo infantil para penetrar no complexo, corrupto e, por vezes, cruel ambiente adulto.

Após serem expulsos da aula, os dois sobem em suas bicicletas e partem para o seu refúgio particular. Trata-se de um lugar afastado, com um lago onde costumam se banhar. Nesse dia, porém, à beira das águas estende-se o cadáver de uma bela mulher. Impressionados com a mutilação de seu corpo e dotados de um espírito a la Hercule Poirot, os amigos decidem então investigar o assassinato.

Considerados suspeitos, os dois têm de lidar com a desconfiança e com a impaciência da polícia, que não demonstra a menor vontade de dar um rumo ao caso. Mas a dupla ganha um reforço quando une-se às buscas o misterioso Ubiratan (velho morador de um asilo que havia sido vítima das torturas e da repressão do governo de Getúlio Vargas).  Com a sua entrada, a história ganha um novo ritmo, mostrando que o que parecia ser um crime sem maior importância liga-se a uma enorme rede de falcatruas, corrupção e impunidade – o que é reafirmado pelo aviso de Ubiratan: “Nada neste país é o que parece”.

Arquitetada de maneira engenhosa, a obra do jornalista-escritor (que, além de repórter dos jornais da TV Globo, também apresenta o programa Espaço Aberto Literatura, na GNT) consegue aliar uma linguagem simples a um estilo requintado. Seus personagens são tão bem construídos que não é raro pensarmos neles como pessoas de nosso convívio.

Além disso, a exatidão do seu trabalho jornalístico também lhe ajudou a recriar com fidelidade a atmosfera vivida pelo Brasil e pelo mundo no início da década de 1960. A começar pela data escolhida para abrir a trama: 12 de abril de 1961 – mesmo dia em que, a bordo da nave Vostok I, o russo Iuri Gagárin chegou ao espaço.

A corrupção brasileira também foi pincelada durante o andamento da história, ao lado da impunidade e da ineficiência de uma polícia que se esquece de sua função para se sujeitar aos (inescrupulosos) desejos dos detentores do poder. Os resquícios da ditadura de Getúlio Vargas e a divisão ideológica do mundo entre comunistas e capitalistas, tão característica da Guerra Fria, também marcam presença na trama.

Tanto esmero e tamanha competência não passaram despercebidos pela crítica literária. O livro levou o Prêmio Jabuti na Categoria Melhor Romance de 2010 e também foi escolhido como Melhor Livro de Autor Estreante no Prêmio São Paulo de Literatura de 2010.

Ao final da leitura, além de atestar o talento inquestionável de Edney Silvestre, é possível refletir sobre a sujeira e a indecência encravadas em nosso território, no qual infelizmente quem geralmente manda na (in)justiça são os donos do dinheiro e do poder.

SE EU FECHAR OS OLHOS AGORA

Edney Silvestre

Editora Record

2009

301 páginas

Certo dia, o caixeiro-viajante Gregor Samsa acorda de sonhos intranquilos e se descobre metamorfoseado em um inseto gigante. A voz de outrora agora não passa de um ruído incompreensível e o rapaz, que até então sustentava pais e irmã, se vê preso a uma carcaça e fadado ao asco e à repugnância alheia – inclusive dos que lhe são mais queridos.

Essa é a história sobre a qual se ergue o conto A Metamorfose (em alemão, Die Verwandlung), escrito por Franz Kafka em 1912 e publicado pela primeira vez três anos depois. Confesso que, durante a leitura do fino exemplar adquirido no sebo, o incômodo foi grande – e acredito que essa era a real intenção de Kafka.

Incomodar e cutucar. Fazer refletir. Em seu infeliz fado, Samsa ajuda a retratar de forma crítica uma sociedade (tanto a do início do século XX quanto a atual) em que a possibilidade de trabalhar e assim gerar lucros é a mais importante (e talvez a única) função das pessoas no mundo – e a quem não mais participa do jogo, desse modo, cabe a exclusão e o abandono a que foi sentenciado o protagonista.

Indo mais longe, A Metamorfose também encarna a dificuldade da humanidade em aceitar o novo, o medo diante do desconhecido e a intolerância às mudanças. Se Samsa passou a guardar um exterior animalesco, suas emoções continuaram intocáveis. Para as pessoas ao seu redor, entretanto, a desprezível condição exterior do personagem triunfou sobre a interior; e o respeito e afeto que tinham por ele foram desaparecendo pouco a pouco, até sumir de vez.

Ao término da leitura, a torturante trajetória de Samsa continua a inquietar; o mais inquietante, porém, é perceber que, excluindo o caráter fantástico da obra, A Metamorfose é um retrato bastante real da intolerância às inúmeras metamorfoses ao nosso redor. O escritor existencialista alcançou, com essa obra, função que segundo ele deve exercer a literatura: “Um livro tem que ser um machado para o mar congelado dentro de nós”, refletiu Kafka. “A literatura só é digna desse nome quando descongela o sangue de quem lê”.

A METAMORFOSE

Franz Kafka

Editora Brasiliense

Tradução de Modesto Carone

1996

As palavras saídas da boca de ninguém menos que Monteiro Lobato, o pai da Emília, da Narizinho e de toda trupe de O Sítio do Picapau Amarelo, enaltecem a grandeza e a sabedoria escondidas nesses pequenos seres de papel – além do poder transformador que podem operar em cada sociedade. Atrevo-me a chamá-los de seres (e espero, assim, não incomodá-lo, caro leitor) pois, a cada nova obra que saboreio, mais guardo comigo a certeza de que, sim, os livros têm vida.

E é para divagar sobre esses companheiros de jornada (os que vieram e os que hão de vir) que dedico o MARCADOR DE PÁGINAS. Um cantinho virtual onde comprometo-me a compartilhar leituras, com suas dores e delícias, além de oferecer meus pitacos sobre assuntos relacionados ao universo literário e editorial.

Seja bem-vindo, fique à vontade para chegar e se aconchegar, e receba os meus desejos de uma boa leitura!